Era dez da manhã em Spa-Francorchamps, algo em torno de cinco da manhã aqui no Brasil. O tempo estava bonito lá na região das Ardenhas, com o céu tão azulado como um carro da Leyton House e sem as ameaçadoras nuvens que costumam encharcar a floresta local. Lá nos boxes, os primeiros motores ecoavam seus inúmeros decibéis. Trinta pilotos entrariam naquela belíssima pista pela primeira vez naquele ano. Retificando: vinte e seis destes trinta pilotos entrariam na pista pela primeira vez. Quatro deles (Brundle, Blundell, Grouillard e Caffi) haviam sobrevivido ao purgatório da pré-classificação duas horas antes.
No meio destes trinta pilotos, havia de tudo. Campeões como Ayrton Senna, Alain Prost e Nelson Piquet, veteranos da turma da frente como Nigel Mansell, Gerhard Berger e Riccardo Patrese, eternos sofredores do meio do pelotão como Olivier Grouillard, Martin Brundle e Pierluigi Martini, promessas como Jean Alesi, Mika Häkkinen e Gianni Morbidelli e jovens desiludidos como Stefano Modena, Alex Caffi e Nicola Larini. No meio desta patota, muito boa, por sinal, havia um aí que se destacava bastante. Era um garoto queixudo, estranho e magrelo de apenas 22 anos. Nunca tinha disputado uma corrida de Fórmula 1 antes. Seu nome era quase impronunciável: Michael Schumacher.
Schumacher substituía Bertrand Gachot na Jordan pelos motivos que retratei neste antigo post. Quem acompanhava o automobilismo com afinco até já tinha ouvido falar no cara, que havia vencido o Grande Prêmio de Macau da Fórmula 3 no ano anterior e que fazia bonito com um Mercedes C291. Quem só acompanhava a Fórmula 1 achava que este era apenas mais um piloto pagante, um Pedro Chaves que comia chucrute.
No primeiro dia daquele fim de semana de Spa, 23 de agosto de 1991, Schumacher pilotou em Spa-Francorchamps pela primeira vez na vida, contrariando a informação que seu empresário Willi Weber havia dado a Eddie Jordan sobre antigos trunfos do jovem notável na pista belga. O aprendizado foi rápido. Na Eau Rouge, Michael chegava a reduzir marchas e a dar leves toques no freio em suas primeiras voltas. Não demorou muito e ele já estava voando com tudo na temerária curva em subida. Na Blanchimont, destemido, ele vinha com o pé totalmente cravado no acelerador. Pequeno detalhe: seu companheiro, o experiente Andrea de Cesaris, não estava conseguindo fazer o mesmo.
Logo de cara, Schumacher fez 1m55s322, o que lhe deu o 11º tempo. De Cesaris, no mesmo Jordan-Ford verde e azul, foi seis décimos mais rápido. Algumas horas depois, foi realizado o primeiro treino oficial. Mais à vontade com o Jordan 191, Schumi não precisou de mais do que um único jogo de pneus para fazer 1m53s290, o oitavo melhor tempo. Para surpresa de todos, De Cesaris ficou quase um segundo atrás. E olha que o tempo do piloto alemão poderia ter sido ainda melhor, mas uma de suas voltas rápidas foi interrompida por uma bandeira vermelha causada por um violento acidente de Eric van de Poele.
Este foi o primeiro dia de Michael Schumacher como piloto de Fórmula 1. Hoje, faz exatos vinte anos que tudo isso aconteceu. O alemão continua queixudo, estranho e relativamente magro, mas ganhou sete títulos mundiais e construiu um patrimônio que, dizem, ultrapassa a casa do bilhão de dólares. A personalidade também segue a mesma, a de um cara tímido, introvertido, simpático, dedicado, sério e razoavelmente humilde. Engana-se feio quem pensa que ele se acha o rei da cocada preta.
Eu tenho implicância com datas. Às vezes, me vejo pensando coisas do tipo “o que eu estava fazendo na tarde de 14 de fevereiro de 1996?” e viajo. Além disso, gosto de tomar uma data como referência e pensar em seu contexto. Por exemplo, o que aconteceu no dia 1 de maio de 1994 além da morte de Ayrton Senna? Fazendo pesquisa rápida, descubro que, na África do Sul, o ex-presidiário político Nelson Mandela havia se elegido presidente do país.
No Brasil, o ministro Rubens Ricupero havia anunciado que os preços dos derivados do petróleo, como a gasolina, seriam convertidos para URV, a unidade indexadora vigente no momento, em quinze dias. Para quem não sabe, a URV foi um mecanismo criado pelo Plano Real que ajudou a acabar com a hiperinflação que assolou o país durante quase duas décadas. Em São Paulo, foi anunciada a construção de um hotel e um estacionamento para quase quatro mil carros no Aeroporto de Congonhas. No futebol, o Palmeiras ganhou de virada do São Paulo por 3 a 2 e se aproximou do título do Campeonato Paulista. Por fim, Pelé curtia sua segunda lua-de-mel após juntar os trapos com uma psicóloga. Tudo isso aí não significou nada perante a tragédia de Imola.

No dia em que Schumacher fez seu primeiro treino oficial na Fórmula 1, este homem acabou com os últimos resquícios do comunismo na Rússia
Pois bem, o que acontecia lá no primeiro dia de Schumacher na Fórmula 1?
23 de agosto de 1991. Eu tinha dois anos, mas faltavam apenas treze dias para completar três. Era um moleque risonho e bobo, com olhos muito mais puxados do que agora. Tinha uma irmã que havia nascido em janeiro. Meu pai usava mullets e minha mãe usava aquele cabelo encaracolado e farto, licenças estéticas da época. Morávamos todos em uma pequena edícula erguida no quintal da casa da tia do meu pai, localizada na Vila Teixeira, periferia de Campinas. Era realmente pequena: sala, quarto, banheiro, cozinha e só. Na garagem, um Gol amarronzado. Confio apenas na minha memória.
Na sala, uma televisão da Philips com doze botões, do dois ao treze. Na época, dava para o gasto. Não existiam estas frescuras de HDMI, Blu-Ray, TV digital, TV por assinatura e HD externo. Nem controle remoto. No máximo, ajuste de cor, contraste e brilho, e seja feliz. E eu era. Vendo Pica Pau, Pernalonga e Fórmula 1.
Meus pais assistiam às corridas como qualquer outro brasileiro na época: apenas para ver o Senna vencer. No domingo de manhã, me largavam na sala e eu ficava lá, hipnotizado com aqueles carrinhos coloridos na tela. Dentro de uma caixa de papelão. Caixa de papelão dos leites Elegê. Disso eu me lembro bem. Toda vez que vejo Elegê no supermercado, me lembro da caixa de papelão, meu bunker infantil.
Fórmula 1 é algo confuso demais até mesmo para adultos, quanto mais para uma criança. Eu gostava do Senna. Gostava do capacete amarelo, da musiquinha que tocava no final, da felicidade que ele trazia para todos. Gostava de acidentes. Adorava, aliás. Meu negócio era pegar meus carrinhos e tacá-los sem dó na parede branca da sala. Nem Philippe Alliot faria melhor.
Em 1991, já estávamos pensando em sair daquela casa. Meu pai havia arranjado uma casa um pouco maior para alugar no Jardim São Fernando, um bairro muito seguro, bonito e próspero para traficantes. Nunca gostei dessa nova casa. Na verdade, sinto uma ponta de saudade daquela casinha da Vila Teixeira. Da porta de ferro que dava para um barranco. Da linha de trem que ficava a algumas centenas de metros. Da agência do Nossa Caixa, Nosso Banco, com aquele logotipo com dois quadrados coloridos. Da Favarelli. Passei em frente à Favarelli, que vende peças, nesse fim de semana. As letras de metal e o logotipo da Bosch deram lugar a uma horrenda placa dessas impressas. Odeio placas impressas.
E o resto do mundo? O mundo, para uma criança como eu, se restringia a uma caixa de papelão, alguns carrinhos, leite com Toddy e diversão pura e inocente. Lá fora, o mundo acompanhava com apreensão o fim da União Soviética. No dia da estréia do Schumacher, o presidente russo Boris Ielstin anunciou a ilegalidade do Partido Comunista e de todos os jornais comunistas do país, como o Pravda. Em Minas Gerais, uma operação conjunta das polícias Civil e Militar prendeu 520 crianças e adolescentes de rua. E, coitadinho, a revista Fortune anunciou que a fortuna do magnata Antônio Ermírio de Moraes havia caído de 2,3 para apenas 1,7 bilhão de dólares. Ô, dó. Enfim, nada de novo neste mundo de loucos.
Para a Fórmula 1, sim. Aquele treino de sexta-feira marcou o início de uma nova fase na Fórmula 1. Fase que provou que até mesmo os títulos de Juan Manuel Fangio, as vitórias de Alain Prost e as poles de Ayrton Senna eram superáveis. Que irritou muita gente por valorizar demais as estratégias e os pit-stops. Que deixou muitos nostálgicos e saudosos aborrecidos. Que criou uma nova leva de fãs, que não puderam acompanhar uma Fórmula 1 menos perfeccionista e bitolada. Que nos presenteou com belíssimas demonstrações de genialidade de um indivíduo que era largamente superior a qualquer outro na condução de carros.
A Fórmula 1 precisou se adequar a Michael Schumacher neste interregno. Após seu efêmero período de vigorosos sucessos, a Benetton acabou perdendo Michael e seus amigos Ross Brawn e Rory Byrne para a Ferrari. Imediatamente, a equipe das roupas se transformou em uma cansada participante que não ganhava mais nada, enquanto que os vermelhos voltaram aos seus dias de glória. Alguns anos depois, cansada de tantos sucessos do alemão, a FIA decidiu mudar algumas regras para literalmente acabar com seu domínio. Desde então, a entidade se mostra incapaz de manter o mesmo regulamento por duas temporadas. Quem vê a Fórmula 1 em 1991 não reconhece quase nada na de 2011. Os carros ainda disputam entre si e ganha quem cruzar a linha de chegada em primeiro. Daqui a pouco, nem isso.
Vinte anos. Tudo mudou. Mas o Schumacher ainda está lá. Com a mesma cabeça de piloto vencedor.
23 de agosto de 2011 at 19:38
Rapaz…as vezes o Verde se mostra por demais intransigente e mal humorado…mas o cara escreve de um jeito que nunca vi. Sem babaçao de ovo, o melhor blog de automobilismo do Brasil
24 de agosto de 2011 at 0:10
Hehehehehehe, eu juro que sou um pouco menos pior pessoalmente (quando ébrio, é claro).
23 de agosto de 2011 at 19:54
Como não era nascido em 1991,não tive a sorte de ver a bela F1 de Senna,Prost,Mansell,Piquet,M.Schumacher e outros.
23 de agosto de 2011 at 22:13
Parabéns pelo texto Verde.
Muito, muito bom.
Você é dos melhores caras que tem pela internet para ler sobre automobilismo ! Você e o Flávio Gomes. Depois, vem o resto.
Forte abraço,
Henrique Lima
24 de agosto de 2011 at 11:57
Se o FG for esperto, cata o Verde lá pro GP, que é um site espetacular e com certeza ganharia muito com a presença do Nipo-campineiro.
23 de agosto de 2011 at 22:34
“Nem o Alliot faria melhor”…kkkkkkkkkkk. Olha que o De Césaris faria….hehe
Também lembro de 1991 com muito saudosismo, do alto dos meus 9 anos foi a primeira temporada que acompanhei completa, me lembro o quanto me encantei com a F1 no GP do Brasil, quando eu estava jogando futebol de botão com o meu avô (não sou o Eduardo)… e as vezes me pego pensando “essa corrida eu assisti na TV da sala/do quarto do meu tio/do quarto dos meus avós e depois da corrida eu fui brincar na rua/no meu Atari/etc.
Ah, e eu era Mansell, torcia para que o Senna se espatifasse no muro…Fui torcer para o Senna só em 93, mas ali eu já era fã do Barrichello, mais que do Senna.
24 de agosto de 2011 at 3:41
Engraçado que eu fazia os mesmos. Sentava na sala aos domingos, dentro de uma caixa de papelão da TV de 29 antiga que compramos em 97, e via as corridas. prendia com um palito de churrasco, um prato descartavel à uma das faces da caixa e fazia de volante. Os 2 pedais(eu já sabia que eram só 2 na epoca, mesmo la com 6, 7 anos) eram 2 chinelos velhos um em cima do outro, 4 no total.
Os carrinhos, coitados. Se não fosse meu espirito de porco hoje teria uma coleção de mais de 600 miniaturas. mas a maioria não sobrevivia. Acabava esmagada a frente com um martelo pra simular acidente, ou queimadas no quintal. isso quando eu, gordo e desajeitado como eram, não pisava em cima do teto pra fingir capotamento. Nessas horas a gente vê como tudo mudou em tão pouco tempo. E daqui a 20 anos a depressão vai vir junto com a crise dos 40 lol
24 de agosto de 2011 at 12:58
Ainda falta um bom texto sobre o Prost…
24 de agosto de 2011 at 14:34
É foda…
Você tocou na minha maior ferida:a merda da nostalgia.
Acho que já escrevi isso antes,mas eu só gosto de F1 por causa desse sentimento.
Nasci um pouco depois dessa corrida.19 de setembro.
A primeira lembrança que tenho de F1 foi justamente do acidente do Senna.
E foi só isso.Depois tive um hiato de alguns anos e só lembro de flashes da temporada de 96 e de outros tantos de 97.
O engraçado é que lembro de muito pouco,mas desde muito pequeno assistia corridas.Tenho mais lembranças minhas vendo jogos do Fluminense (era tricolor até mais ou menos 1996) e usando um corte de cabelo e faixa na cabeça ridícula igual à do Renato Gaúcho ( http://e.i.uol.com.br/album/110609camisas_flu_f_008.jpg ).
Acordava no domingo de manhã,ligava a TV do meu quarto no Cartoon Network e assistia Pingu até começar a corrida.
Enquanto a corrida rolava,eu ficava deitado,ou pegava uns carros de metal e arrancava os pneus para simular um pit stop.
Tentar lembrar da infância é uma merda.
Tenho a mesma paranoia com datas.
Já desejei muito ter um calendário em que era só escolher uma data,que ele mostrava perfeitamente o que estava fazendo no tal dia.
Ah!
O Schumachão é foda.
24 de agosto de 2011 at 20:13
O que falar, depois desse texto?
Porra, Verde, vc tá de sacanagem! Fez todo mundo aqui ter uma crise de nostalgia!
Belo, belíssimo texto. dos melhores que vc já escreveu para o blog.
24 de agosto de 2011 at 20:31
Otimo Texto Verde
Eu não tive a sorte de viver em 1991 (meu irmão nasceu em 1991) e nem de ver o tempo que a Formula 1 era boa (1980-1999,eu so começei a me interessar por Formula 1 em 2007).Mas foi bom para alguem que nasceu em 06/09/1997.
26 de agosto de 2011 at 17:19
Carambovsky!
Olha a estação de trem perto da sua casa!
Pô, não sabia que você morava na URSS…
Que coisa não? (by Chaves)
Direto da Iugoslavia (VIVA TITO!)
Um abraçov
27 de novembro de 2012 at 23:35
Puta merda reconheci na hora o lugar da foto da estação de trem! Rolei de rir…kkkkkk! Ótimo texto.