É fantástico poder trabalhar em uma equipe de Fórmula 1 e acumular experiência que será muito útil para minha carreira, incluindo aí a oportunidade de poder pilotar o carro no teste de novatos em Abu Dhabi no fim do ano. Com estas palavras, a pilota espanhola María de Villota, 32, demonstrava o quão feliz estava por ser a primeira mulher contratada por uma equipe de Fórmula 1 desde Giovanna Amati em 1992.
No dia 7 de março deste ano, a sorridente e simpática De Villota foi anunciada pela Marussia como pilota reserva da equipe nesta temporada. Um cargo teórico, eu diria. De pouquíssimas credenciais anteriores no automobilismo, María não tinha direito à superlicença e, portanto, não poderia participar dos grandes prêmios de Fórmula 1. Ela só poderia obter o documento se fizesse uma distância mínima de 300 quilômetros num carro da categoria, coisa impossível nos dias atuais de testes limitados. Ou se implorasse por uma permissão excepcional da FIA, o que também não seria tão provável.
Mas não havia problema. Os dois lados estavam ganhando, de qualquer jeito. A Marussia queria literalmente apenas um rostinho bonito, uma mulher que atraísse as atenções para a equipe pelas razões mais pedreiras possíveis. Só para dizer que ela era uma pilota profissional, os russos permitiriam que ela desse algumas voltinhas qualquer dia desses. De Villota, por outro lado, sabia que sua carreira na Fórmula 1 não seria longa e muito menos bem-sucedida. Mas ela estava lá, no paddock da categoria mais importante do planeta, dando risada, tirando fotos e sendo feliz. Você, que fala mal, acharia ruim ter um emprego desses?
Cabe aí pequena reflexão. A limitação de testes é uma das coisas mais hediondas da Fórmula 1 atual, pois simplesmente coíbe o desenvolvimento de pilotos e carros. Não por acaso, a categoria está tecnicamente estagnada desde 2009 – um absurdo, em se tratando da “mais tecnológica e sofisticada do planeta”. Eu sou totalmente favorável ao corte de custos via racionalização do calendário, limitação ao uso dos motorhomes, diminuição drástica nas taxas cobradas pela FIA ou mesmo a implantação do tal teto orçamentário. Contudo, esse negócio de permitir apenas alguns testes em linha reta no meio de lugares inóspitos é ridículo, quase que anacrônico. Dei minha opinião. A propósito, não vejo relação disso com o infortúnio de Maria de Villota. O que aconteceu com ela foi pura fatalidade.
Voltemos. Como funcionária da Marussia, María de Villota teria obrigações banais como acompanhar a equipe em todas as suas ações de marketing, pilotar no simulador de vez em quando e ficar lá nos boxes escutando os diálogos entre engenheiros e pilotos. Nada que empolgaria muito um piloto jovem e competitivo, convenhamos. Para María, no entanto, estava tudo muito bem. Sua imagem estava sendo usada pela Marussia, mas a moça também estava se divertindo bastante e ainda era paga por isso. Estando os dois lados felizes, não há problema.
Ontem, 03 de julho, ela finalmente teve uma oportunidade de pilotar o MR01 vermelho e preto de Timo Glock e Charles Pic. Não foi a primeira vez que De Villota pôde dirigir um carro de Fórmula 1, pois ela já havia tido uma breve experiência com um carro da Renault em Paul Ricard no ano passado. Só que, dessa vez, María faria seu primeiro teste como contratada de uma equipe. Tudo bem, eram apenas alguns quilômetros em linha reta num precário aeródromo do interior da Inglaterra, mas já era alguma coisa.
O resto vocês já se cansaram de ler. Uma estúpida rampa de caminhão e um carro desgovernado a cerca de 60km/h foram suficientes para arrebentar um capacete e causar profundos ferimentos na cabeça de María de Villota. Ela foi levada ao hospital às pressas e, embora já consciente, chegou à UTI correndo risco de morte. Ontem à noite, a pilota foi transportada para um hospital em Londres e passou por algumas cirurgias para solucionar o traumatismo craniano e tentar salvar o olho direito, bastante danificado no acidente. Há poucas horas, o anúncio triste: o olho direito realmente está irrecuperável. Ninguém discute que sua carreira no automobilismo chegou ao fim, o que não tem relevância alguma. A luta agora é por uma vida normal.
O acidente pegou todos de surpresa ontem. Numa Fórmula 1 tão perfeccionista, tão avessa ao risco, ninguém poderia esperar que um acidente estúpido a 60km/h num teste em linha reta poderia cegar uma pilota e ainda deixá-la em estado grave no hospital. Pois é. Organizadores, fiscais de pista, midiáticos desinformados e torcedores escandalizáveis falam tanto em segurança, em limitar os riscos e a diversão em prol da integridade dos pilotos que acabam se esquecendo que a morte prega peças. Quando ela tem de acontecer, acontece. Ou alguém aqui acha que o que se passou com Marco Campos em 1995 poderia ser evitado?
Felizmente, María sobreviveu. Graças a Deus. A única coisa que poderia ter sido feita neste caso seria a implantação de uma cobertura acrílica no cockpit. Se a cabeça dos pilotos estivesse totalmente protegida, Maria de Villota e Felipe Massa teriam sido poupados de seus ferimentos e Henry Surtees ainda estaria conosco. Eu realmente não entendo isso. A intelligentsia automobilística não vê problemas em desfigurar circuitos lendários e limitar as ultrapassagens, mas se mostra totalmente contrária ao cockpit coberto. Tudo bem. Eu aposto tranquilamente que a próxima morte na Fórmula 1 ocorrerá quando um piloto receber um golpe direto em sua cabeça – uma mola, uma roda, uma rampa de caminhão, uma bola de capotão, uma garrafa de cerveja ruim, o que você quiser.
Mas ao invés de olhar para os amantes, as pessoas continuarão culpando a cama pela traição. Li textos que criticavam o aeroporto e até mesmo a equipe pelo ocorrido. Espera aí. Testes em lugares bizarros podem não ser aquilo que todos esperam para um esporte como a Fórmula 1, mas eles sempre aconteceram. Quanto à equipe, a única culpa cabível seria relacionada a um possível problema no carro, que teria engatado a primeira marcha do nada.
Li em algum lugar que o motor Cosworth poderia ter sido o responsável por isso, já que ele possui um dispositivo que envia sinais ordenando o acionamento automático da primeira marcha numa situação de marcha neutra e rotações baixas, como era o caso na hora do acidente. Li também que a centralina, que coordena toda a parte eletrônica do carro, pode ter enlouquecido e levado ao engate involuntário da primeira marcha. Tudo isso aí e especulação e somente uma boa averiguação na telemetria do carro poderá mostrar o que aconteceu. Mas o que importa?
Hoje em dia, tudo deve ter um culpado. Esta mania de se preocupar mais em responsabilizar alguém do que com o acidente em si começou lá com Ayrton Senna, que morreu e muita gente até hoje quer encontrar um Judas para comer seu rabo com sal e pimenta. Nos acidentes do Rafael Sperafico e do Gustavo Sondermann, sobrou para a belíssima Curva do Café em Interlagos. Na morte de Dan Wheldon, ah, é óbvio que a Indy é amadora e os ovais são assassinos per si. Alguém já parou pra pensar que, em se tratando de automobilismo, tragédias acontecem? Até onde eu sei, ninguém tem intentos homicidas no esporte. Se há alguém a culpar, que sejamos adultos e culpemos a todos nós, entusiastas ou participantes do automobilismo. Não fosse por nós, as corridas sequer existiriam e vários olhos e vidas teriam sido poupados.
Como eu disse, a única coisa que poderia ser discutida é a colocação de uma cobertura no cockpit. O resto é circunstancial. De Villota quase morreu porque o carro simplesmente ligou sozinho no lugar mais inadequado possível. Inadequado porque havia um caminhão no meio do caminho. Culpa do motorista do caminhão? Culpa dos mecânicos que cuidam do carro? Culpa da própria De Villota? Culpa da crise espanhola? Os erros humanos acontecem e a falta de sorte também. Controlá-los é uma coisa muito difícil, praticamente inócua. Por via das dúvidas, o melhor é seguir em frente. E que aqueles que se preocupam em cortar cabeças alheias direcionem suas energias em palavras um pouco menos sensacionalistas. E oportunistas.
Há outra coisa que gostaria de colocar aqui. Um pouco mais desagradável. Logo na primeira vez que li um título sobre o acidente de María de Villota, sem saber de sua gravidade real, é óbvio que pensei algo como “ih, mulher no volante, perigo constante”. Óbvio. Vivo fazendo esta brincadeira entre os íntimos. Já vi muita perua com cara de nojinho fazendo horrores no trânsito no alto de seu SUV preto. A grande maioria das pessoas faz esta brincadeira. Do mesmo jeito que damos risada do judeu pão-duro, do japonês nerd, do francês afrescalhado e do texano caipira.
Mas a brincadeira acabou tão logo li sobre a situação da pilota e as circunstâncias nas quais elas aconteceram. Prosseguir associando o acidente de María com uma suposta inabilidade inerente ao gênero feminino num momento desses, como eu vi em vários comentários em sites grandes por aí, é de uma leviandade tremenda, para dizer o mínimo. Enquanto não soubermos a real motivação do acidente, não podemos atribuir responsabilidade alguma à espanhola. E mesmo que ela não tenha causado tudo, e daí? María sempre foi uma pilota de talento limitado, assim como milhares de pilotos do sexo masculino. Gente que realmente acredita que De Villota merece alguma crítica pelo fato de ser mulher definitivamente não nasceu com cérebro.
Por fim, um detalhe não muito relevante me veio à cabeça. María de Villota aparenta ser uma mulher bastante vaidosa, ao contrário do que acontece com várias de suas colegas de profissão. Para nós, que portamos um saco escrotal entre as pernas, ficar sem um olho significa tão somente perder grande parte da capacidade de visão. Para uma moça dessas, haveria também toda uma questão estética maior por trás. Ao perceber que está sem uma parte fundamental de seu corpo, María sofrerá um choque: o que será da minha beleza a partir de agora? Ela terá de ser bem forte para conseguir lidar com esse tipo de questão sem grandes traumas. Que seja muito forte, então.
Não há muito mais o que dizer sobre isso. Neste momento, María de Villota está em coma induzido, sem saber que sua vida nunca mais será a mesma. Ao acordar, que tenha ao seu lado todas as pessoas que a amam e que consiga seguir adiante. Aliás, esse negócio de seguir adiante vale para todos os envolvidos no automobilismo. Sem sensacionalismos ou clamores, que o esporte a motor siga tão fascinante e perigoso como sempre foi.
4 de julho de 2012 at 19:46
Eu penso que os fãs de F1 em geral que tem uma certa rodagem e até mesmo os novatos não saem brincando com essas coisas. Pelo menos até agora não vi nenhum babaca falando para ela casar com o Helmut Marko ou coisas do gênero. É muito bom saber que existem pessoas com bom senso no nosso esporte. Cornetadas a parte com os pilotos atuais. Existem pessoas com bom senso.
4 de julho de 2012 at 22:04
Ate morrer alguem na formula 1 pra se tocarem que passou a hora dessa cobertura de acrilico,mas não,a formula 1 pra mim esta no mais baixo nivel de seguranca desde 1994,quando mal havia seguranca tanto que dois pilotos morreram num mesmo fim de semana.
E por que se testar em um aeroporto,vc pode criticar os que falam mal das condicoes da pista,mas por favor esse é o acidente mais ridiculo da formula 1 desde o acidente fatal de Tom Pryce,que morreu apos acertar um extintor de incendio,mas isso era 1977,era aceitavel para a incompetencia em relação a seguranca naquela epoca,mas em pleno 2012 um acidente desses,a 70 km/h,o que que houve,voltamos a seguranca dos anos 50?!?!?!?!?
E é claro que testes nesses locais deveriam ser proibidos,qualquer carro de formula 1 so poderia pisar em locais classificados pela fia em nivel A,se não não precisava existir classificação,corriam em qualquer esquina como era na decada de 30,40…
Como eu disse tomara que esse acidente faça a FIA refletir pra que caminho que a formula 1 ta tomando,se não daqui a pouco vira a indy que mata um por ano assim como matou ano passado mas um piloto.
Que o termino da carreira da Maria de villota sirva como um alerta a FIA,ou sera que vai precisar um vettel,um alonso,ou um hamilton ter que encerrar suas carreiras por acidentes estupidos como esse para que a FIA proiba esses testes no fim de mundo,para que coloquem a cobertura no cockpit,enfim pra que melhorem a seguranca por que do jeito que ta ando a coisa daqui a pouco da merd*!
5 de julho de 2012 at 14:43
Amigo, até entendo seu ponto de vista, mas você falou algumas besteiras.
1o. Testes em aeroportos sempre foram comuns. É uma forma de avaliar o desempenho aerodinâmico do carro sem usar os caros túneis de vento, aproveitando a longa reta da pista de pouso. Além do que, com a regra de limitação de testes, é uma maneira de avaliar componentes mecânicos em atividade fora de corrida.
2o. A Indy não mata um piloto por ano. Antes da morte de Dan Wheldon no ano passado, a última vítima havia sido Paul Dana, em 2006, durante os treinos para o GP de Homestead.
3o. A perícia no carro ainda não foi concluída, mas me parece claro que o acidente (devido a velocidade do carro) deve ter sido devido a alguma avaria mecânica ou eletrônica. Algo imprevisto pela equipe e que dificilmente poderia ser evitado.
4o. O uso de cobertura acrílica traz segurança contra impactos, mas dificulta que o piloto saia rapidamente do carro em caso de incêndio, por exemplo. Além do que, o uso da cobertura meio que descaracteriza um fórmula. Ficaria mais próximo de um protótipo de Le Mans.
4 de julho de 2012 at 22:19
Esses dias, comentei com amigo sobre uma proteção de acrílico no cockpit. O que achei que seria contrário à sua utilização era um possível incêndio após o acidente. O cara querendo sair do banco, aquela dificuldade em tirar o cinto, e mais a proteção. Mas acredito que tenham fabricado algo decente já.
Quanto ao olho, absurdamente terrível, mas dá pra utilizar uma prótese, ao menos
5 de julho de 2012 at 2:36
Canopi nos F1 urgente! Se pegar fogo acredito que com a roupa anti incendio e ações rápidas dos fiscais de pista dá pra contornar esse problema. Agora o que você falou sobre o próximo acidente com vítima fatal (piloto) na F1 é a mais pura verdade! Já já vai dar merda se a FIA não tomar uma atitude….
5 de julho de 2012 at 2:41
Confesso que o pensamento nefasto machista que me passou pela cabeça não foi o de “mulher no volante…”. Quando soube do acidente eu pensei de cara “que desperdício essa gata se quebrando”. E você foi o primeiro, e talvez o único, com coragem pra abordar esse aspecto.
5 de julho de 2012 at 2:49
Esse sistema de testes limitados e restritos é muito inadequado, para dizer o mínimo. E, pedindo desculpas pela discordância, penso que teve influência direta no acidente, sim. Hoje essa é praticamente a única oportunidade para os novatos adquirirem alguma experiência (existem os treinos das sextas, mas essas ainda são ocasiões subutilizadas pelas equipes, que preferem desenvolver os carros para a corrida com os titulares). Então há a junção de pilotos inexperientes na tocada de um F1, como Maria de Villota, e locais completamente inadequados para essa prática. Ou será que alguém acredita que haveria um caminhão desses no meio da pista em, digamos, Paul Ricard? Essa limitação, a meu ver, precisaria ser revista com urgência. Havia testes em locais inadequados no passado? Sim, é verdade (embora não me lembre de local tão esdrúxulo quanto Duxford). Mas também no passado morriam muitos pilotos por ano.
5 de julho de 2012 at 9:08
Neste tipo de acidente, uma cobertura de acrílico no cockpit pouco adiantaria para proteger o piloto. Acidente estúpido e terrível.
No mais, o texto é certeiro, como sempre.
5 de julho de 2012 at 13:07
Eu escrevi sobre isso ontem à noite, e afirmei que o que não se pode fazer é “tomar decisões em cima do joelho”, como dizemos por aqui. Mas sei que, por exemplo, modificar a história dos testes ao longo da época seria melhor, pois se formos ver, o teste de Duxford acontece porque a equipa estava a contornar a proíbição. Se calhar o melhor seria dar a cada equipa um numero limitado de testes ao longo da temporada, testando onde quiser, em circuitos de nivel 1, sem serem os que fazem parte do calendário.
De resto… que dizer? Nas sábias palavras de Sheldon Cooper: “Bazinga”.
5 de julho de 2012 at 14:30
Valeu senhor Eclestone, FIA e cia, por ficarem de caô com esse papo de limitar testes e tals. Convenhamos uma equipe milionária por mais pobre que seja nos dias de hoje poderia locar um circuito, adequado para realizar testes com pilotos e carros, limitar testes é congelar desenvolvimento e estagnar tudo, além de botar em risco a vida de pilotos inexperientes, e eu me pergunto para que, para uma pseudo economia ??????, Essa economia porca e hipócrita acaba custando literalmente os olhos da cara de pessoas que não tem nada haver com essa politicagem de merda. F1 MENOS COLARINHO BRANCO E MAIS CORRIDA POR FAVOR, PARA O BEM DO ESPORTE.
5 de julho de 2012 at 18:41
Foi uma pena o que aconteceu com a Mariazinha. Agora perdeu o olho direito e provavelmente perdeu a carreira. Belo texto.
5 de julho de 2012 at 22:47
Testar em um aeroporto é meio inseguro, mas, aonde alguém vai arrumar um circuito com uma reta de um quilômetro e meio? Quanto a cobertura acrílica ou o que seja, sou contra. Descaracterizaria os carros de F1, seria tão legal quanto tampar os pneus.
11 de julho de 2012 at 2:30
Texto excelente. finalmente alguém com a porra da mão na consciencia, de todos textos sobre ela que li. Fico muito triste mais pela perda do olho mesmo. Assim como ela, eu também ficaria absurdamente deprimido, não só pela questão da visão, mas da estética, da carreira construída e jogada no lixo, do sonho, do ego.
Vai ser um tremendo trauma pra coitada. Tomara que melhore logo.
21 de julho de 2012 at 19:30
Legal o seu blog !!! Parabens!!!