Não sei o que se passa, se é o meu estado de espírito ou se é o alinhamento dos astros com a constelação de Áries. Não sei se outros compartilham da mesma impressão, ou se é só uma chateação exclusivamente minha. Na semana anterior ao GP da Austrália, confesso que não estava ligando muito para a corrida. Escrevi normalmente por aqui, apresentei todas as doze equipes, dei meus pitacos, assisti ao primeiro treino livre de sexta-feira, cheguei atrasado a uma aula na faculdade por ter visto o treino classificatório de sábado e acompanhei a corrida inteira. Mas sabe quando você acompanha tudo isso mais pelo costume e pela força interna que ainda move sua paixão pelo automobilismo e menos pela diversão em si? Pois é.
Um parágrafo desses pode soar estranho para alguém que escreveu sobre Fórmula 1 em mais de 90% dos posts até aqui. E soa ainda mais estranho por se tratar de alguém que não se sente bem perdendo uma única etapa, mesmo que ela seja tão inútil como o GP da China ou o GP da Espanha. Na verdade, nos últimos dois ou três anos, eu devo ter perdido uma ou outra corrida por ano. E se interessa a algum de vocês, nem fiquei muito incomodado, algo impensável há uns oito ou nove anos. Hoje em dia, só me incomodaria mais por não conseguir postar as notas de pilotos e equipes na segunda-feira. Palavras de alguém que gosta muito do esporte, mas que não consegue esconder seu tédio com o presente e sua desilusão com o futuro.
Muita gente já falou sobre uma suposta chatice da Fórmula 1. Muito já foi comentado sobre a falta de ultrapassagens, a burocracia, a importância do dinheiro, as ordens de equipe, a falta de personalidade dos pilotos e o tédio proporcionado pelas pistas de Hermann Tilke. Não vou por este caminho, até porque discordo da maioria dessas reclamações. As ultrapassagens, segundo uma estatística divulgada na internet, foram bem numerosas, só perdendo para a enlouquecida corrida de 2010. As pistas do Tilke podem ser pouco originais, mas são bem melhores do que muita coisa celebrada por aí. Ordens de equipe, burocracia e dinheiro sempre existiram. O problema é outro – bem mais abstrato e subjetivo.
Por que você vê uma corrida de Fórmula 1? Motivos inúmeros: a tecnologia dos carros, o luxo, a velocidade, os pilotos ou qualquer coisa que destaque a categoria de qualquer outro esporte no planeta. Eu, que não sou rico e não sou engenheiro, sou um tipo de fã bem mais prosaico: aquele que, no fundo, só quer ver uma corrida de carros que proporcione diversão. Sem complicações, sem as breguices típicas de quem acha que está por cima da carne seca, sem excesso de regulamentos e limitações, sem tumultos extra-pista. Só quero ver uma corrida e sair satisfeito por ter me entretido.
O problema já começa por aí. Cada vez menos pessoas encaram o automobilismo como pura forma de se divertir. Nada contra lucrar e fazer o negócio funcionar de maneira séria e profissional, muito pelo contrário. O problema é querer transformar o lado esportivo em uma coisa séria e certinha demais. Não pode ter isso, não pode fazer aquilo, o piloto entra na pista pensando na opinião da mídia e no retorno que o patrocinador deverá ter com sua imagem, a pista deve ter tantos m²s de área de escape e tantos milhares de pneus na barreira, o fã não pode sequer ver o carro sendo montado nos pits, há necessidade de credencial para isso e para aquilo. Que negócio é esse? Pessoal, isso daí é só uma corrida de carro!
Em 1999, quando comecei a assistir Fórmula 1 de verdade, as coisas nem eram tão diferentes em um primeiro momento. Os pilotos já se comportavam como estrelas, a novíssima pista de Sepang inaugurava um padrão clínico de construção de novos circuitos, as equipes torravam centenas de milhões de dólares e as corridas eram chatas em sua maioria. Até aí tudo bem, mesmo porque boa parte das coisas, se pararmos para pensar, segue igual desde o início dos anos 70, quando a Fórmula 1 ganhou corpo estruturado. Mas havia diferenças fundamentais até mesmo entre 1999 e hoje em dia.
1999 foi um ano em que, independente do resultado, poucos saíram insatisfeitos. Todas as corridas tiveram algum fato inesperado, que podia mudar o panorama do campeonato da água para o vinho. As áreas de escape ainda eram feitas de grama e brita, os autódromos ainda não tinham aquela insuportável cara de estacionamento de shopping e os carros eram diferentes entre si. Sem punições distribuídas a torto e direito ou restrições tão severas a corridas com chuva, havia uma maior liberdade para a ocorrência do imponderável. E os regulamentos, embora sempre tivessem mudanças pontuais todo ano, não se diferiam muito dos utilizados nos anos anteriores. Os engenheiros não tinham de queimar neurônios com um KERS ali ou um difusor duplo acolá. Enfim, as corridas eram tão chatas como hoje – mas os detalhes, que não podem ser considerados como meros, eram simplesmente mais interessantes. E foi daquela Fórmula 1 que eu aprendi a gostar.
Hoje em dia, se eu não acompanhasse, não sei se eu me interessaria pela Fórmula 1. E vejo que isso acontece com muita gente. “As corridas de antigamente eram mais legais” pode até ser uma frase errônea, mas é um indicativo de que há algo errado. Mas o quê?
As corridas continuam chatas, as ordens de equipe seguem existindo, as equipes continuam torrando milhões e os pilotos seguem se achando a última bolacha do pacote. Mas e os demais detalhes que acompanham a categoria? O regulamento está muito estrito, o que limita a criatividade de engenheiros e pilotos. A busca pela perfeição levou a Fórmula 1 a ser imune a erros e desvios de rota – o que tornou tudo insuportavelmente previsível. As áreas de escape asfaltadas são iguais, os deslumbrados torcedores de olhos puxados são iguais, os grampos de 90° são iguais, os xeiques que fomentam a brincadeira são iguais, os carros são iguais, os motores são iguais, os comportamentos dos pilotos são iguais. Enfim, de uns poucos anos para cá, todos os componentes da categoria passaram a seguir um script.
E todos ficaram intolerantes com as distorções, com as diferenças, com tudo aquilo que não segue o “padrão Fórmula 1 de qualidade”. Por isso que as pessoas não toleram equipes como a Hispania ou a Virgin, saltimbancos que não gastam fortunas e que buscam unicamente a sobrevivência. Por isso que elas zombam quando o asfalto se desmancha ou o bueiro de um trecho de rua escapa. Por isso que reclamam quando um trecho fica empoçado após um temporal. Por isso que clamam por mais segurança (como se isso fosse possível) quando um Mark Webber dá cambalhota após um erro seu. Por isso que bradam contra a Ferrari quando o piloto sai dos boxes com a mangueira do carro. Todos se esquecem que são essas pequenas coisas que trazem a graça da categoria. São os momentos mais amadorísticos, mais heterodoxos que nos vêm à lembrança, como Mônaco/1996 ou Austrália/1989. Alguém aqui se lembra de alguma coisa memorável e divertida que aconteceu no Bahrein?
Nesse fim de semana, dei-me conta que todo esse jeitão clínico e certinho da Fórmula 1 chegou a um ponto insustentável, que subverte o aspecto relaxado e até mesmo libertário que caracterizou o automobilismo desde seu nascimento. Como a FIA consegue transformar a questão da ultrapassagem em algo tão complicado, enfadonho e burocrático? É KERS pra lá, é zona de ultrapassagem pra cá, é asa móvel por cima, é mudança de pontuação pra baixo, mas e aí? Funcionando ou não, é coisa demais para uma mísera manobra.
Mas não é só isso. Um conservadorismo torpe parece ter tomado conta de tudo. Os pilotos disputam as corridas tensos e com um monte de coisas na cabeça. Com a dificuldade para fazer ultrapassagens, a impossibilidade de se posicionar no vácuo do piloto da frente, a falta de elasticidade dos motores atuais, os infinitos botões do volante, as ordens pelo rádio, o excesso de curvas de baixa, o rigor dos comissários e as muitas obrigações profissionais que devem ser realizadas longe de um carro, como dá pra ser alguém que corre muito, se diverte e ama o que faz? Só mesmo um monte de almofadinhas infantilizados e corporativizados para tolerarem tudo isso.
E tem mais. Várias outras coisas me afastam da Fórmula 1 aos poucos. A língua de Bernie Ecclestone, que parece fazer questão de irritar quem não concorda com seu modelo de administração. A gestão modorrenta e situacionista de Jean Todt, que não parece estar fazendo muita questão de consertar as cagadas de Mosley e Balestre. Os horários cada vez menos favoráveis a ocidentais. A preocupação maior de pilotos e equipes em “parecer” do que em “vencer”. A sanha por uma polêmica pelo prazer maior de ganhar manchetes. A arrogância desmedida daqueles que acham que podem mais porque “venceram mais em determinado momento” ou “cativam mais fãs”. A formação cada vez mais hermética de panelinhas.
Eu não nego que a Fórmula 1 não é minha categoria preferida. Nesse momento, sem maiores opções, cito a GP2 como o melhor campeonato de monopostos do mundo. Mas mesmo ela, que se preocupa demais em se parecer com a Fórmula 1, não chega aos pés das antigas Fórmula 3000 e Fórmula 2 em termos de diversão. Espero que a Indy, que anda inventando demais mas que ainda se preocupa com o espectador, siga por um caminho menos restrito. E ainda assim, acho difícil que tenhamos algo parecido com a CART – um campeonato sensacional, no qual as corridas não precisavam de chuva ou invencionices para serem divertidas e imprevisíveis.
Não, não quero dizer que a Fórmula 1 das antigas era melhor porque as corridas eram mais legais, os pilotos eram melhores, havia menos arrogância ou as pistas eram espetaculares. Tudo isso daí é puro preconceito com o contemporâneo, já que o automobilismo é minimamente caro, corporativo, arrogante e eventualmente enfadonho desde há mais de 100 anos. A Fórmula 1, nos últimos anos, teve até mais brigas do que há 10 anos. As disputas pelo título vêm sendo até mais encarniçadas do que o que tínhamos nos “áureos tempos de Senna e Clark”.
Mas falta alguma coisa. Falta mais diversão pura e simples. E ao menos para mim, são os menores e mais preciosos detalhes que podem me deixar muito ou nada satisfeito.
29 de março de 2011 at 17:19
Sensacional. Como sempre, um post maravilhoso e gostoso de se ler.
Concordo com cada linha dita por você; o que estraga a F1 atual é justamente esse excesso de entrelinhas, um regulamento quase que inquebrável, que quer que todos sejam iguais, previsíveis robóticos dentro de um cockpit fazendo cotovelos de 90º seguidos de retas de 1.5 KM e um harpin.
Isso dá nos nervos.
Um exemplo recente é essa sacanagem contra a sauber. E daí que o carro era irregular em milimetros? QUE SE DANE! O melhor da corrida foi a surpresa do Perez em sétimo, e a ousadia dele de desafiar o regulamento estúpido, e levar uma corrida inteira nas costas sem fazer uma troca de pneus.
Aí vem o regulamento, e corta o bem pela raiz, deixando-nos putos e tendo que nos contentar com a mesmice de sempre.
Se nada melhorar nos próximos anos, muita gente vai ficar como nós dois: vendo F1 apenas pela paixão, e não pela emoçao
29 de março de 2011 at 20:49
ô FIA que gosta de cortar o barato de todos os tupiniquins que se dispoem a assistir a corrida nas altas horas da madruga,nem me lembro da ultima vez que eu falei assim-peraí mãe,não posso arrumar o quarto agora,porque a corrida de f1 tá boa que só!-e acho que nunca falei na minha vida
ps:eu botei o tracinho no inicio da frase que nunca falei porque não achei as aspas no meu teclado,se alguem souber aonde é me avise com detalhes,hein
29 de março de 2011 at 21:26
Acredito que seja o excesso de regras e mudanças no regulamento que tem tornado a F-1 tão estranha ultimamente.
A regra da zona de ultrapassagem é ridícula demais. Claro que isso não vai acontecer, mas acho que um bom protesto seria nenhum piloto usar a bendita asa nesse trecho.
Todo o ano ela tenta se re-inventar, com a desculpa de melhorar o show e buscar mais audiência; como se corridas de carros fossem shows. A F-1 está deixando de ser uma corrida de carros para ser um evento de entreterimento corporativo, daqueles bem chatos mesmo, onde sempre se aplaude o líder e nada é contestado.
29 de março de 2011 at 22:57
Falta uma F-Indy na Fórmula 1. Esses ingredientes que você sente falta estavam presentes na prova do último domingo. Uma pista fraca (St. Pete não dá chance para ultrapassagens), carro com pouca tecnologia (prcisa do braço do piloto), piloto fazendo cagada (Marco Andretti, que juntou meio mundo na largada), equipes pobres e ricas emboladas (a KV do Kanaan e a HVM da Simona de Silvestro andando muito bem), um certo amadorismo na organização (os comissários desvirando o carro do Marco Andretti com ele dentro foi prova disso), boas imagens e até um narrador mala e que quer mostrar que sabe tudo mas não sabe nada (o Bolacha). Enfim, ganhei algumas horas de sono não acordando pra ver uma prova modorrenta.
29 de março de 2011 at 22:59
Complementando: pra Indy ficar “ideal” falta o carro novo, algumas pistas (Elkhart Lake e Laguna Seca) e alguns pilotos com mais talento, como o Di Grassi e o JK Vernay (que ganhou a Lights ano passado e ficou a pé).
29 de março de 2011 at 23:23
…. Sabe, eu tento entender porque de tanto estatismo nas regras …
Afinal de contas a f1 ñ desenvolve mais nada para carros de rua ou seja ñ precisam se prender a nada… tem coisa aí hein….
minhas regras seriam: todos podem fazer qualquer alteração aerodinâmica e de chassi desde que não use peças flexíveis ou que se ajuste durante a corrida. a partir de percebida a superioridade de um carro sobre o outro, as outras equipes poderiam copiar apenas uma parte de tal equipe (tipo a asa da frente e não a de tras ou a entrada de ar e não a caixa do motor).
O que vcs acham, seria legal ler outras opiniões….
30 de março de 2011 at 0:31
Eu era daqueles que maol dormia a noite quando o Barrichello largava em terceiro, nos tempos de Jordan e Stewart…hoje em dia me sinto mal ao pensar que nem você, as vezes me dá a impressão que eu não “amo” mais a F1.
30 de março de 2011 at 1:55
Pelo visto não é só você Verde, pois tem mais 7 pessoas que concordam até agora. Eu comecei a assistir F1 em 1999 também, naquela época do Barrica e da Stweart. E o campeonato era muito bom, me divertia bastante. Me lembro que perdi o Gp da Malásia daquele mesmo ano, e fiquei irado. Naqueles tempos, era inaceitável pra mim perder uma corrida. Acho que a ultima vez que fiquei com ancioso por causa de uma foi o Gp da Espanha de 2009. De lá pra cá, não morro se perder um Gp. Coincidentemente, estava refletindo exatamente sobre isso antes da nova temporada começar, pois antes eu era doente por corridas, ao ponto de gravar os Gps e revê-los depois. Desde 2006, nunca mais gravei nenhuma corrida.
30 de março de 2011 at 13:42
Brilhante o texto. É exatamente o que eu e muitos fãs sentem da F1 hoje.
Antigamente a F1 era feita pelos lápis dos engenheiros e, pricipalmente, pelo braço do piloto, mas hoje esses engenheiros e pilotos são refens das canetadas de engravatados almofadinhas que nunca correram de F1, mas se sentem o dono do mundo.
30 de março de 2011 at 13:49
Verde,
eu tenho um ponto de vista – sobre as ‘causas da chatice’ – ligeiramente diferente do seu.
A partir do momento que a F1 (via Bernie Ecclestone principalmente) começou a se preocupar em ser um ESPETÁCULO ou a DIVERTIR seus espectadores/apaixonados, ela deu um tiro no próprio pé!
Se a preocupação fosse, tornar-se cada vez mais uma competição automobilística melhor e até mais simples… BUNGO! Compulsoriamente o “espetáculo” estaria garantido! Nós, os apaixonados [tel]espectadores, agradeceríamos muito.
Talvez esteja nesse ponto a razão do fracasso(?) da F1. Por qual razão os regulamentos são tão restritivos como os atuais? Qual o motivo de tantas punições? Pra que a eliminação dos testes (só pra economizar dinheiro, é história pra boi dormir!)? Milhares de câmeras flagrando quaisquer piscadelas dos pilotos, mesmo que estejam a 300 por hora e de capacete com viseira escura… pra quê? Os GPs perderam – a muito tempo – a característica/identidade regional (ou nacional) que era marca registrada até o início dos anos 80. Por que “pasteurizaram” tudo? Os ‘Complexos Automobilísticos” cada vez mais suntuosos… não se fala muito do traçado, da pista… por que?
Acredito que tudo isso seja em nome do “espetáculo”… lamentável que seja assim…
E, enquanto essa mentalidade perdurar, sempre faltará algo… acho que a alma das corridas…
um abraço.
30 de março de 2011 at 13:50
onde lê-se BUNGO!, leia-se BINGO!
31 de março de 2011 at 21:56
Belissimo texto. Só um pitaquinho: A foto que voce colocou como Argentina 96 é no Brasil 96. E a prova da Austrália 89, é a UNICA que tenho em DVD fora das vitórias do Ayrton, porque era muito pequeno na epoca e queria ver a prova direito. E como certeza: FOI UMA PROVA SENSACIONAL! Sem cambio automatico, sem controle de tração, sem Pneus especiais, enfim…