Qual é a diferença entre Ayrton Senna e Alex Yoong? Tudo? Nada? Um é brasileiro e o outro é malaio? Em um dia chuvoso e melancólico como hoje, tomo um certo tempo para escrever um texto que conclui que não há grandes diferenças entre ambos, já que nasceram com dois braços, duas pernas, dois olhos, uma boca, cabelos escuros e, em algum instante de suas vidas, se tornaram pilotos de Fórmula 1. Tudo isso pode parecer cretino de tão óbvio, mas é sobre isso que vou falar aqui. E a idéia é menos simplória do que parece. Atenção: texto bem grande. Imprima e vá ler enquanto faz suas necessidades.
Minha pouco pretensiosa intenção é renegar comparações ao dizer que pilotos como Ayrton Senna e Alex Yoong são muito mais parecidos do que nossa imaginação supõe e que circunstâncias externas fizeram um obter resultados muito melhores que o outro. Em poucas palavras, Senna não é tão melhor assim do que Yoong, e isso vale para qualquer outra comparação aparentemente estapafúrdia como Michael Schumacher e Paul Belmondo ou Jim Clark e Yuji Ide. É um tema polêmico? De certa forma, é. Mas é algo a que poucas pessoas se atentam. Todos tendemos a achar que Ayrton Senna se tornou um dos maiores pilotos da história da Fórmula 1 unicamente por ser um ser humano dotado de capacidades excepcionais ao mesmo tempo em que Alex Yoong é considerado um piloto de baixa qualidade que não merece o menor crédito. Desculpe dizer, é uma visão equivocada.
Equivocada porque ambos, Senna e Yoong, enfrentaram diferentes percalços desde a primeira voltinha em um kart até a última volta como piloto de Fórmula 1. Pilotos considerados geniais, como é o caso de Senna, Schumacher e Clark, tiveram todas as condições para serem considerados como tais. É evidente que estes indivíduos dispunham de alguns conjuntos de atitudes, filosofias e talentos extras que ajudaram. No entanto, imagine Ayrton Senna estreando na Hispania, como ocorreu com seu sobrinho. Por mais talentoso que fosse, nunca chamaria a atenção e o máximo que conseguiria seria um perfil no F1 Rejects, como, aliás, aconteceu com nosso amigo Yoong. Idem para Schumacher estreando em uma Forti-Corse ou Clark estreando na jurássica Serenissima. Os multicampeões são, acima de tudo, seres abençoados com todas as condições possíveis para a glória.
Se você discorda, então vamos fazer uma análise progressiva. Vamos reunir todas as 6,5 bilhões de pessoas do mundo atualmente em um balaio de gato para saber quem daí pode ser um campeão mundial de Fórmula 1. Temos quatro campeões na categoria atualmente, cerca de 0,0000000006% da população mundial. A maior qualidade deles, definitivamente, é a sorte. Descartemos aí quem morreu no parto ou muito cedo. Como um bocado de criancinhas chinesas, sudanesas e norte-coreanas falecem muito cedo, podemos nos considerar sortudos por estarmos aqui.
Se você sobreviveu até os dez anos de idade, meus parabéns! Você está em uma idade apta para estrear no kart. Mas no meu país não tem kart, o que eu faço? Senta e chora, amigão. Bilhões de pessoas dançam aí. Se você nasceu nas Ilhas Salomão, em Moçambique ou no Tadjiquistão, não terá um kartismo relevante à sua disposição. Apenas crianças muito ricas poderiam sonhar em competir no automobilismo, e mesmo assim teriam de migrar para um país mais central. Porém, embora todos os campeões da história da Fórmula 1 tenham nascido em países com um contato mínimo com o automobilismo, não podemos nos esquecer destas criancinhas que resultam em caras como Ho-Pin Tung e o próprio Yoong. Mas lembremos que são exceções e, portanto, voltemos ao grupo majoritário.
No caso de você ter chegado aos dez anos e ter nascido em um país razoável, você pode começar a correr desde que não seja pobre. Vamos excluir, então, os 30% de pobres que passaram por tudo até aqui. Mas espera um pouco. Você também não conseguirá correr se for de classe média baixa ou mesmo da classe média mais intermediária. Neste momento, o escriba aqui dançou. Não serei o primeiro descendente de orientais a ser campeão de Fórmula 1. Uma pena. Assim como eu, quase todos os que chegaram até aqui dançaram. Só restaram os filhinhos de papai dos melhores países e um ou outro pequeno magnata de algum país distante por aí. Ayrton Senna e Alex Yoong se encaixariam, respectivamente, no primeiro e no segundo grupo.
Vamos eliminar, aqui, a esmagadora maioria de filhinhos de papai que não vai seguir no automobilismo. Eliminemos também os filhos da classe média alta que sofrem para fazer uma ou duas temporadas no kartismo antes de abandonarem o sonho. Digamos que sobram aí umas 50.000 pessoas. Os pilotos de Fórmula 1 estão todos aí, então vamos passar a analisar as coisas dentro da ótica do automobilismo.
O kart é o melhor lugar pra saber quem é bom e quem não é. Se o cara for muito ruim, ele não sobreviverá a essa etapa e, assim, a maioria dos 50.000 sobram aí. Sempre há um ou outro que se quebra todo em um acidente e acaba ficando de fora da festa. No geral, os melhores kartistas são também aqueles que têm mais dinheiro para comprar o melhor equipamento. Para o cara ser bom no kart, ele deve ter coragem, preparação física de jóquei, reflexos apurados e um razoável conhecimento de mecânica. Não se enganem: quase todos os pilotos da história da Fórmula 1, e até mesmo de categorias menores, exibem currículos muito bons no kartismo.
No entanto, o número de pilotos que não conseguem ter dinheiro para subir para o automobilismo de verdade é grande. Na verdade, apenas uns poucos conseguem andar de monopostos. De modo otimista, vamos calcular aí algo em torno de 2.000 pilotos que correm de monoposto atualmente. A maior parte deles corre nas categorias mais primárias, como os campeonatos nacionais de Fórmula BMW e a Fórmula Renault. Se o cara pegar uma equipe ruim nessa etapa, a chance de ir mal é muito grande. Assim, ele terá dificuldades para arranjar patrocinadores até mesmo para mudar para uma equipe melhor. Não adianta o piloto ser muito talentoso: sem dinheiro e timing, não dá. Poucos sobem para categorias como a Fórmula 3 e a GP3.
Os que subiram são extremamente felizardos, mas a chance de fracassar por aí é altíssima. Uma equipe errada, uma sequência de acidentes, um acidente mais forte, um companheiro de equipe melhor (ou mais endinheirado) ou até mesmo uma crise econômica no país de um piloto pode acabar com sua carreira. Se o colega de equipe leva mais dinheiro, a chance desta equipe privilegiá-lo, mesmo que ele seja um bundão, é enorme. Mas vamos supor que o cara seja muito endinheirado e tenha conseguido alguns resultados aceitáveis. Ele sobe para a GP2.

Yoong: ele não conseguiu nada na Fórmula 1. Não conseguiu porque nunca teve condições externas para isso. E olha que ele foi muito mais longe do que a média
Na GP2, ele comerá o pão que o diabo amassou. Sempre há favorecimentos políticos e você só terá alguma chance se tiver um padrinho muito forte ou se for filho de dono de banco. Mas mesmo assim, apenas uns dois ou três pilotos de um grid de 24 acabam subindo para a Fórmula 1 um dia. Se você conseguir, meus parabéns: você faz parte dos pouco mais de 800 pilotos que se inscreveram para ao menos uma etapa de Fórmula 1 nos 60 anos de história da categoria.
Mas isso não significa absolutamente nada. Alguns pilotos sequer conseguiram estrear devido a problemas em suas equipes, como Jordi Gené e José-Maria Lopez. Outros fizeram apenas um fim de semana, como Vincenzo Sospiri. Outros até participaram de várias corridas, mas como não estavam em equipes boas, acabaram sobrando, como ocorreu com David Brabham. No fim, uma minoria acaba sobrevivendo na Fórmula 1 por um bom tempo. São pilotos que tiveram todas as condições de chegar a este ponto. Porém, dificilmente você será campeão. Apenas 31 pilotos conseguiram isso até hoje.
O que os fez campeões? São caras que nasceram em países razoáveis, sobreviveram, optaram pelo automobilismo, tiveram muito dinheiro ou apoio de pessoas importantes (Michael Schumacher e Kimi Raikkonen são casos emblemáticos), correram com os equipamentos certos no kartismo, pegaram adversários com menos condições, acabaram chegando às categorias de base, não tiveram problemas com dinheiro, acidentes e maus resultados, chegaram à Fórmula 1, tiveram a sorte de correr em equipes boas, competiram contra adversários que não juntavam todas as condições necessárias para o título, obtiveram espaço dentro de suas equipes e tiveram também alguns talentos e atitudes com relação a reflexos na pista, mecânica, relacionamento com mecânicos e engenheiros, dedicação, inteligência, marketing pessoal, esperteza e paciência. Um cara que é campeão quase sempre cumpriu, em maior ou menor intensidade, todos esses requisitos.
Ayrton Senna, por exemplo, nunca teve problemas financeiros. Sempre teve equipamentos bons no kartismo e nas categorias de base e sempre conseguiu vencer. Na Fórmula 1, estreou por uma Toleman que era boa o suficiente para permitir que ele mostrasse seu talento e ao mesmo tempo ruim o suficiente para ninguém pressioná-lo. Depois, fez sua fama como um piloto rapidíssimo em uma Lotus que se comportava de maneira excelente nos treinos. Na McLaren, pegou um carro genial e desenvolveu um relacionamento excelente com o staff. Sempre teve patrocinadores e sempre soube fazer seu marketing pessoal. De quebra, juntou inteligência, perícia, muita dedicação e esperteza. Olhando assim, fica até fácil fazer uma receita para ser campeão.
Já Yoong, malaio, nunca pôde se desenvolver em um automobilismo forte. Na Ásia, sempre andou bem, mas o automobilismo local não podia ensiná-lo alguma coisa. Ao chegar na Europa, percebeu que o nível técnico desenvolvido em seu continente natal estava muito abaixo daquilo que era pedido no Velho Continente. Com isso, nunca conseguiu uma equipe boa no automobilismo-base europeu. Como resultado, nunca conseguiu mostrar resultados por onde passou, ao mesmo tempo que nunca conseguiu aprender a ser um piloto competitivo. Acabou entrando na Fórmula 1 por causa do dinheiro na pior equipe do grid, a Minardi. O carro era muito lento e muito difícil de guiar, e Yoong só andava em último. As rodadas eram frequentes. Após um ano e meio, acabou deixando a categoria sob muitas críticas.
Depois desse monte de coisa, só me resta dizer que a maior diferença entre Senna e Yoong (só uma lembrança: são duas alegorias, não me refiro particularmente aos dois) é que tudo deu certo para um e nada deu certo para o outro, por mais que isso signifique que ele superou muita gente e comeu muito arroz e feijão até andar na Minardi. Por mais que ambos tenham se desenvolvido em escolas de automobilismo diferentes, o ato de acelerar, frear e virar o volante não muda muito. São os detalhes que fazem a diferença, e Senna teve muita sorte em conseguir maximizar esses detalhes, seja pela preparação física ou pelos carros pilotados no início da carreira. No fundo, Senna, Yoong, eu e você somos tudo a mesma coisa, mas só um pôde vencendo três títulos a bordo de um excepcional McLaren.
13 de julho de 2010 at 18:10
O que o seu texto faz, na verdade, é o que a maioria dos historiadores fazem nos últimos cem anos. Ou seja, você aplica o materialismo histórico em uma determinada situação para entender um determinado evento. Materialismo histórico é um termo técnico para a teoria marxista.
Marx, afinal, defende que o homem é fruto das condições do meio, e que a infra-estrutura (condições econômicas, em especial) determina a superestrutura (todo o resto).
A tese de mestrado (ou doutorado, não lembro) de Eric Hobsbawn é fantástica e bem didática: ele explica por que o jazz perdeu espaço para o rock nos anos 50, relacionando a música ao preço do acetato (material com que se faz o disco de vinil), que abaixou após a II Guerra, e a idade em que o norte-americano médio conseguia acumular certo capital (o New Deal deu emprego aos mais jovens, enquanto, durante a Grande Depressão, quem tinha entre 15 e 30 anos não conseguia enriquecer).
Hoje, não há nada de muito original nisso. Eu mesmo, outro dia, fiz um post ‘marxista’ defendendo que a Era Turbo, na Fórmula 1, não foi um evento casual, mas que ocorreu devido ao aumento das pistas de velocidade média elevada no calendário do campeonato a partir de meados dos anos 70, e da permanência destes nos anos 80.
Também há um resquício do desdobramento leninista no seu raciocínio. Lênin argumentava que os países também se comportavam como se estivessem em uma luta de classes, com os mais ricos explorando os mais pobres.
Há pouco tempo, um americano lançou um livro bem interessante, que falava sobre o talento individual ser superestimado. Ele pega o exemplo dos times de Hóquei, constatando que em todos eles há predominância de jogadores que nasceram entre janeiro e junho. A resposta é simples: as categorias de base são divididas por ano de nascimento, logo os que nasceram nos primeiros meses do ano, em idade de crescimento, estão mais fortes que aqueles que nasceram depois, e se sobressaem em um esporte que exige porte físico avantajado.
Enfim, ao final do post, tive a impressão de que ele não fala de automobilismo, mas é simplesmente um exercício de análise. Ele peca por um excessivo reducionismo. Mas existem poucos blogs que se prestam a esse tipo de reflexão, então espero que minhas críticas sejam encaradas como construtivas.
13 de julho de 2010 at 18:19
Interessante mesmo.
Eu até penso mais de uma maneira mais comtista, no qual a carreira de um cara como Alex Yoong é determinada por algumas características histórico-geográficas.
Na vida real, por questão de crença política, não acredito em materialismo histórico ou qualquer escola filosófica de esquerda. Não que todos tenham lá oportunidades iguais de se tornarem milionários, mas é bem mais fácil contornar situações. Em um esporte como o automobilismo, onde só existe uma categoria aos olhos do público e onde só um é campeão, no entanto, não dá pra acreditar no piloto como um self-made man. Acho que todos os detalhes são absolutamente importantes na construção da carreira.
Seu comentário é muito bom. O reducionismo foi uma consequência de uma natural limitação de espaço e de raciocínio. Se pararmos para escrever tudo o que o assunto rende (como eu pensei em fazer), eu teria de escrever uma tese de doutorado, hehe.
13 de julho de 2010 at 20:26
Excelente blog, parabéns!
Quanto ao seu texto, cuidado: as viúvas podem acabar interpretando tudo errado!
14 de julho de 2010 at 10:56
Gostei muito do texto.
Tenho acompanhado seu blog.
Parabéns
15 de julho de 2010 at 5:11
No comments, seriam negativos!
16 de julho de 2010 at 1:47
Seu blog é excelente, seus textos interessantíssimos e suas opiniões, mesmo que discordantes do comum ou do esperado, são muito relevantes. Parabéns.
14 de março de 2012 at 22:45
Gostei do seu texto e compreendo o seu ponto de vista, mas discordo quando reduz o sucesso de Ayrton Senna ao simples facto da sua família ter dinheiro. Senna, tal como Yoong também vem de um país onde o nível monetário e competitivo naquela altura não era tão elevado como na Europa. No entanto Senna veio para a Europa, primariamente para provas de kart internacionais e para a Formula 3000 e triunfou. Também após a sua chegada à fórmula 1 ele teve que provar (e provou) que com carros inferiores (Toleman e Lotus) dava perfeitamente para ver que estavamos na presença de um talento, expressão que era frequentemente utilizada por comentadores televisivos de F1 da época de diferentes nacionalidades pois ele fazia coisas que mesmo com melhores carros (e também com muito dinheiro) não faziam. Um facto é que na F1 só os mais ricos mesmo têm hipótese de lá entrar, mas para fazer uma campanha até às melhores equipas é preciso provar em equipas inferiores que o sucesso e o talento natural não se resumem apenas a sorte/azar ou dinheiro…