Ah, eu estava esperando pelo dia em que eu poderia escrever algo sobre o Autodromo di Pergusa, conhecido pelos mortais como Enna-Pergusa. Não há muito o que se apresentar. Enna-Pergusa é a minha pista preferida e é o melhor circuito do mundo. Quem discordar, boa gente não é.
Por que este escriba ama este circuito italiano? Muitos motivos. E eles serão explicados aos poucos.
Começo aqui com um bem banal: o circuito é localizado na cidade de Enna, próxima a Palermo e pertencente à ilha da Sicília, localizada no sul da Itália. A Sicília é conhecida por ter habitantes barulhentos, pessoas bronzeadas e mafiosos, não nessa ordem. Um lugar desses não deixa de ser muito legal.
Construído em 1951, o Autódromo di Pergusa é localizado dentro da belíssima Riserva Naturale Speciale della Regione Siciliana, uma das maiores reservas naturais do país. Ao redor da reserva, um vilarejo de cerca de 1.500 habitantes. A Riserva Naturale, de considerável diversidade na fauna e na flora, tem como seu grande cartão de visita o lago Pergusa, um pequeno mas simpaticíssimo lago de quase 2km².
Ponto turístico na região, o lago Pergusa possui até mesmo valor mitológico. Dizem os gregos que a bela Perséfone, filha de Zeus, era desejada por Hades, deus dos infernos. Como o relacionamento entre ambos soava impossível, Hades achou por melhor raptá-la. Em um belo dia, Perséfone colhia flores ao redor de um lago quando, de súbito, foi puxada por Hades para as profundezas do inferno, e lá acabou se tornando sua esposa.
Após nove dias e nove noites de busca, Deméter, mãe de Perséfone e deusa da agricultura, se entregou à dor, o que levou à secura da terra, à escassez das colheitas e à morte das plantas. Vendo o caos se estabelecendo, Zeus desceu ao inferno e fez um acordo com Hades: durante metade do ano, ela ficaria com Zeus, levando alegria a Deméter e garantindo o crescimento das flores e dos frutos; na outra metade, ela ficaria com Hades e a tristeza de Deméter levaria ao definhamento de plantas e árvores. E surgem aí as quatro estações.
E o que diabos Enna-Pergusa tem a ver com mitologia grega? O lago onde Perséfone foi raptada era exatamente o lago Pergusa. E Enna-Pergusa foi construído exatamente ao seu redor. No momento de sua construção, em 1951, a intenção era desenvolver um traçado oval que circundasse o lago e que tivesse como background a reserva natural siciliana. Sua primeira versão, de fato, não tinha chicanes. A versão contemplada por esse texto é a de 1975, utilizada até 1995.
À primeira vista, o traçado parece bastante idiota. Porém, ele é considerado bastante técnico e, por incrível que pareça, pede um carro que se comporte bem tanto em partes de alta como em partes de baixa pelos motivos que explicarei depois. Além de tudo, ele é bastante perigoso e, durante sua existência, teve de ser modificado algumas vezes para conter as altíssimas velocidades. Em 1970, Enna-Pergusa ganhou sua primeira chicane, na verdade uma sequência de suas chicanes, a Proserpina e a Pineta. No ano seguinte, outra chicane, a Zagaria, foi implantada pouco antes da linha de chegada. Em 1975, um complexo de média velocidade foi implantado após a linha de chegada. Por fim, em 1996, o alemão Michael Schumacher foi homenageado com uma pequena chicane antes do Curvone.
Enna-Pergusa já sediou de tudo, de corridas extra-campeonato de Fórmula 1 entre 1962 e 1965 a 27 corridas de Fórmula 2 e Fórmula 3000 entre 1972 e 1998. As histórias que saem de lá são inúmeras e construíam o folclore idílico e amadorístico que ronda o circuito. Vou me restringir a algumas da Fórmula 3000 que eu conheço.
O centro médico do circuito é localizado ao lado de uma chicane. E a única maneira de fazer o acesso a ele é por meio de um caminho localizado dentro da pista. Portanto, qualquer acidente com feridos obrigava o carro a utilizar a tal chicane para chegar lá. Em um momento no qual não havia safety-car e as corridas não costumavam ser interrompidas, você imagina o perigo.
Os sicilianos são muito pouco racionais e isso pôde ser visto em Enna. Normalmente, os bandeirinhas iam para o meio da pista fazer a sinalização! Em 1988, o francês Michel Trollé sofreu uma capotagem na corrida de Fórmula 3000 e seu carro ficou virado de cabeça para baixo na brita. O sensatíssimo motorista do guincho simplesmente colocou um cabo no carro e saiu puxando-o de cabeça para baixo e com o piloto dentro, gesticulando um monte! Até mesmo o helicóptero possui histórias: em uma ocasião, tiveram de atrasar um treino porque os organizadores tinham se esquecido de alugar um! Em outra, atrasaram um treino porque o helicóptero foi atender feridos de um acidente de rua em Palermo!
Um brasileiro possui história para contar por lá. Rubens Barrichello, na edição da corrida de F3000 em 1992, sofreu um violento acidente nos treinos. Com o capacete rachado e suspeita de traumatismo craniano, ele foi colocado na ambulância e seguiria para um hospital. Seguiria. No meio do caminho, a ambulância sofreu um acidente e restou a Barrichello ser transportado para o ambulatório de uma penitenciária próxima ao local do acidente. Deve ser o único piloto da história do automobilismo a receber cuidados médicos na cadeia.
Mas o melhor de Enna ocorreu em 1996, também na Fórmula 3000. Sabe-se lá por qual motivo, milhares de sapos (!) saíram do lago e invadiram o autódromo. O circuito ficou lotado de anfíbios e os pilotos não conseguiam desviar. Os mecânicos tiveram de realizar a escatológica tarefa de arrancar os pobres cadáveres bidimensionais dos pneus. Além disso, como eles eram numerosos o suficiente para cobrir as zebras, os pilotos não conseguiam perceber onde se iniciava a curva. Muitos perdiam o ponto de freada.
Ultimamente, Enna-Pergusa não vem sendo utilizada para competições relevantes devido a questões burocráticas. No lugar, a organização vinha utilizando as instalações para shows e outros tipos de evento. Porém, em setembro do ano passado, a FIA devolveu a licença 2 para o circuito e Enna poderá voltar a receber competições relevantes, chegando até a negociar uma etapa do FIA GT para o final deste ano. As negociações não deram certo, mas Enna-Pergusa está no caminho de voltar ao mainstream do automobilismo mundial.
TRAÇADO E ETC.
Como eu disse lá em cima, Enna-Pergusa parece ser um circuito cretino de tão fácil. Mas não é. Na verdade, é um desafio para pilotos e carros. São 4,950 quilômetros de extensão com duas curvas e algumas chicanes separando aquilo que pode ser caracterizado como um oval. Em alguns pontos, há até mesmo uma certa inclinação nas curvas.
Apesar do traçado de 1975 ter apenas duas sequências de chicane e um trecho de média velocidade, o piloto não pode acertar o carro como se fosse correr em um oval. As zebras localizadas nessas chicanes são altíssimas, mas o piloto é obrigado a passar por cima delas caso não queira perder tempo. Por isso, se o carro não conseguir ter estabilidade em curvas, ele passará pelas zebras e terminará no guard-rail.
Outro destaque é o péssimo asfalto, ondulado e quebradiço. Os pneus sofrem um bocado por lá. E aí você faz as contas e vê que um circuito aonde os freios são judiados, as suspensões são exigidas, os pneus se acabam rapidamente e os motores sempre trabalham em altíssimas rotações não pode ser um circuito cretino de tão fácil. Conheça alguns trechos:
VIVAIO: É a primeira sequência de curvas localizada logo após a linha de chegada. A primeira perna é a esquerda e a segunda vai à direita. O piloto freia bruscamente para a primeira curva, reacelera e entra na segunda curva escorregando de traseira, devido à falta de aderência desse trecho. Se o carro não tiver downforce, ele terá sérios problemas para completar esse trecho.
PISCINE: É a primeira chicane do circuito, feita à direita e depois à esquerda. Como ela não é muito fechada, o piloto não precisa frear por completo para passar por ela. Logo, escapadas de traseira também são comuns aqui no momento da reaceleração. A partir deste trecho, começa o trecho de altíssima velocidade em pé cravado.
PROSERPINA e PINETA: Um dos dois complexos de chicanes que surgiram para reduzir a velocidade nos carros. O piloto entra na Proserpina, chicane à direita, tendo de jogar o carro na zebra para não perder tempo. É a chicane mais veloz do circuito, mas ele deverá saber dosar o freio aqui e e erros acabam sendo extremamente comuns. A Pineta é a segunda chicane, feita à esquerda e com o carro vindo em menor velocidade.
CURVONE: O próprio nome diz: é uma curva grande de raio bem longo. É bastante inclinada e serve para o piloto atrás pegar o vácuo e tentar ultrapassar na sequência de chicanes seguinte. Lembra bastante uma típica curva de circuito oval americano.
ZAGARIA: É o segundo complexo de chicanes. Nesse caso, como a primeira chicane é mais aberta, o piloto não precisa frear tão bruscamente. Como a segunda chicane se localiza poucos metros depois e é igualmente aberta, o piloto pode até seguir acelerando e passar por ela incólume.
11 de maio de 2010 at 20:18
Muito legal! Também gosto muito de Enna-Pergusa, já que se afasta um pouco da tradição europeia, mas não tem nada a ver com os ovais americanos (que são todos bem calculadinhos, o mais excêntrico talvez seja Pocono).
Do que eu sei do circuito, aparentemente foi o lugar onde Jo Siffert provou o seu valor. Em 1964, segurou bravamente Jim Clark para conquistar sua primeira vitória extra-campeonato na Fórmula 1. Em 1965, foi como um replay: outra vez vitória, outra sobre Clark.
(Há uma entrevista que Jo Bonnier – sim, o próprio! – faz com Clark e Siffert no qual eles falam sobre essas provas. O link é este: http://archives.tsr.ch/player/siffert-clark)
11 de maio de 2010 at 20:31
Opa, só pra complementar. Esse vídeo que mandei acima é em francês. Bonnier apenas pergunta a Clark em inglês, ao qual o escocês responde em sua língua.
O francês de Bonnier é ótimo, talvez seja mais fácil de entender que o de Siffert, muito carregado de sotaque.
A entrevista fala na maior parte do tempo sobre uma prova de subida de montanha na qual eles vão correr. Apenas por volta dos 4m20 Bonnier pergunta sobre a corrida de Enna do ano anterior – a de 1965 ocorreria uma semana depois da entrevista.
Segue o link correto: http://archives.tsr.ch/player/siffert-clark
12 de maio de 2010 at 17:44
O francês do Bonnier é bom mesmo, bem fácil de entender. Pelo que andei lendo, ele era bastante intelectualizado, tendo estudado línguas em Oxford.
O Clark chegou a vencer alguma vez em Enna?
13 de maio de 2010 at 19:12
Nos registros de Fórmula 1 e Fórmula 2, não consta nenhuma vitória do Clark em Enna. Até onde eu sei, essas provas de 64 e 65 foram as únicas do escocês por lá. Então acho que não, ele nunca venceu em Enna.
12 de maio de 2010 at 16:20
Pista muito interessante, com um design simples, porém singular.
E a localização, de vila camponesa do interior da Itália dava o tom daquela época, sendo até um pouco fora de lugar estar na F3000 na década de 90. Mas, como você diz, a F3000 tinha suas pistas doidas e peculiares, e devia ser divertidíssimo correr em Enna.
Por fim, lembrei de Hockenheim com seu traçado antigo, já com as chicanes e antes dos eco-chatos. Achei as duas semelhantes, mas a pista alemã não está no seu calendário, não é? Opinião pessoal ou eu é que criei um paralelismo ai que não existe e elas não tem nada a ver?
12 de maio de 2010 at 17:46
Eu adoro o Hockenheim antigo, mas achei melhor deixá-lo de fora do Calendário por ser parecido com Enna. Como já tinha Nordschleife também, acabei tendo de deixar de fora. Muitas outras pistas que eu gosto ficaram de fora também.
Entre as duas, escolhi Pergusa pelo charme inigualável que ela possui.
17 de maio de 2010 at 23:40
Porque não escolheu Pescara?
Ah, sobre Spa 27 que vc escolheu, porque alguns circuitos europeus eram triângulos equiláteros? Como Pescara e Spa 27?
17 de maio de 2010 at 23:45
E Anderstorp tbm é fera. Pelo menos eu acho. E o circuito da Gávea tbm.
18 de maio de 2010 at 11:14
Não dá pra colocar todos os circuitos legais em um calendário de 22 corridas. Eu deixei várias pistas que eu gostava de fora também: Trípoli, Clermont-Ferrand, Hockenheim, Thruxton, Snetterton, Cleveland, Monza e por aí vai. E Anderstorp… sei lá, não gosto muito, hehehe.
Mas Gávea é uma excelente lembrança.
24 de maio de 2010 at 19:08
Trípoli vc deixou de fora por não encontrar material ou porque não dava pra entrar mesmo?
PS: Qual o site que vc tira as imagens? Eu sei que existe uma espécie de DB of Tracks, mas não sei qual é o site.
25 de maio de 2010 at 10:57
É bem mais fácil achar informação de Trípoli, uma pista que sediava alguns dos principais Grand Prix dos anos 30, do que de outros circuitos como Enna-Pergusa. Aliás, há uma história ótima sobre essa pista, Tazio Nuvolari, Achille Varzi e uma loteria esportiva local que eu vou contar qualquer dia.
O site? É o Motor Racing Database.